Marco do Saneamento (Lei nº 14.026/2020): o que a experiência de 2020–2024 revela sobre velocidade e risco regulatório.
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No saneamento, a pergunta estratégica não é apenas o que muda, mas quando passa a valer. Entre 2020 e 2024, o chamado Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 14.026/2020, que reformou a Lei nº 11.445/2007 e a Lei nº 9.984/2000) expôs um mosaico de tempos institucionais que revela como a regulação no Brasil opera em velocidades muito diferentes. É nesse descompasso que se concentra tanto o risco quanto a oportunidade para quem trabalha com inteligência regulatória.
A própria tramitação do Projeto de Lei nº 4.162/2019, que deu origem ao Marco Legal, já mostrava isso: levou quase um ano entre a entrada na Câmara dos Deputados, em agosto de 2019, e a sanção presidencial em julho de 2020. O Congresso se move em meses, negociando redações e alinhando maiorias.
No Executivo, no entanto, o ritmo foi completamente diferente. Em abril de 2023, os Decretos nº 11.466 e nº 11.467/2023, que alteraram as exigências de comprovação da capacidade econômico-financeira das empresas e flexibilizaram regras sobre prestação regionalizada de serviços, mudaram de forma abrupta a regulação em questão de dias, sem vacatio legis e sem aviso prévio.
No Judiciário, a cadência é ainda mais lenta. As Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs nº 6492, 6536, 6583 e 6882, todas questionando dispositivos do Marco Legal) só foram julgadas pelo Supremo Tribunal Federal em dezembro de 2021, mais de um ano após a sanção da lei. E, em 2023, uma nova disputa chegou à Corte por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 1055, que contestou os decretos de 2023), reforçando como a judicialização pode estender a incerteza por anos.
Entre esses polos de velocidade, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) assumiu protagonismo intermediário. Suas Normas de Referência — como a Resolução ANA nº 8/2024, que definiu metas de universalização, a Resolução ANA nº 9/2024, que estabeleceu indicadores operacionais, e a Resolução ANA nº 11/2024, que tratou das condições gerais de prestação dos serviços — foram precedidas de consultas e audiências públicas e entraram em vigor em prazos de 30 a 90 dias. A ANA não opera na lógica de impacto imediato do Executivo, mas também não arrasta decisões por anos, como o Judiciário.
O mercado e a mídia, por sua vez, funcionam em outra lógica: reagem em horas. No mesmo dia da publicação dos decretos de 2023, ações de companhias de saneamento recuaram na Bolsa e relatórios de analistas revisaram recomendações. A norma ainda nem havia sido interpretada em profundidade e os efeitos já estavam precificados.
Enquanto isso, os dados de acesso mostram que os resultados no setor seguem graduais. Segundo o IBGE, a cobertura de abastecimento de água por rede geral caiu de 88,2% em 2019 para 85,9% em 2023, enquanto o acesso a coleta de esgoto passou de 68,1% para 69,9%. A universalização — 99% de água potável e 90% de esgoto até 2033, como prevê o Marco Legal — permanece distante.
O que 2020 a 2024 ensina é que a regulação não avança em linha reta. O conteúdo das normas importa, mas o tempo em que cada decisão gera efeitos pode ser tão determinante quanto a própria decisão. Decretos presidenciais remodelam exigências em dias, normas da ANA consolidam parâmetros em semanas, projetos de lei exigem meses de articulação política, ações judiciais levam anos para pacificação jurídica, e o mercado antecipa impactos em horas.
No saneamento — e em qualquer setor regulado — compreender essa assimetria de velocidades é estratégico. Não basta monitorar o texto normativo: é preciso mapear o tempo de impacto. Quem enxerga a cadência institucional tem vantagem, porque sabe que estar dias atrasado pode custar anos de execução.
Fontes: Lei nº 14.026/2020 (Marco Legal do Saneamento Básico) – Planalto; Projeto de Lei nº 4.162/2019 – Câmara dos Deputados; Decreto nº 11.466/2023 – Planalto; Decreto nº 11.467/2023 – Planalto; Resoluções ANA nº 8/2024, nº 9/2024 e nº 11/2024 – ANA; ADIs nº 6492, 6536, 6583 e 6882; ADPF nº 1055/2023 – STF; IBGE – PNAD Contínua (Acesso a serviços de saneamento básico) – IBGE; Valor Econômico – Valor; Exame – Exame.



